quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Labareda ao vento

"Aquele pião, aquela labareda ao vento, aquele fogo-fátuo que era Lily quando, colocados os discos na vitrola, o mambo explodia e começávamos todos a dançar.
(...)
Ficávamos de mãos dadas nas matinês do Ricardo Palma, do Leuro, do Montecarlo e do Colina e, embora não se pudesse dizer que tirávamos sarro na penumbra das platéias, como outros casais mais antigos - tirar sarro era uma fórmula em que cabiam desde beijos anódinos até os chupões linguísticos e toques impróprios que depois era preciso confessar ao padre, nas primeiras sextas-feiras, como pecados mortais -, Lily me deixava beijá-la, nas bochechas, na beirada das orelinhas, no canto da boca e, às vezes, por um segundo, juntava seus lábios aos meus..."

Mario Vargas Llosa

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Aturdido


Uma ventania se ergue lá fora
Os pássaros fogem obrigados
Um muro foi construído em minha frente
Ou ele desmorona ou eu.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Irreversível

Éramos unha e carne. Mas de repente uma redoma de vidro te fechou, assim como um aquário encerra peixes sedentos de ar. Estávamos agora tão longe e tão perto, separados por um vidro preso-visitante – espesso como sangue coalhado – apenas sem o detalhe do telefone de palavras.

Sentia que você gritava, suas veias saltavam ao pescoço, assim como o suor-distância escorria por todo nosso corpo, irrequieto e trêmulo, em gotas de saudade encarcerada. Mas apenas o silêncio reinava perante aquela nação de vidro-fosco. Eu via em tua boca aberta a tentativa de me dizer algo, enquanto tuas palavras paravam ali, coladas naquela parede transparente e mortífera.

E o que nos restava de forte e avassalador, o olhar, nos foi também tirado por um fumê despudorado, por todos os lados. Nada mais nos certificava da presença do outro, mas nós sabíamos – com fé de punhos cerrados e olhos vigorosos – que estávamos bem perto, abraçados até.

Alguns dias depois, no entanto, percebemos uma pequena fresta milimétrica na base do vidro. Por lá começaram a brotar papéis repletos de palavras escritas com força, como carvão em parede branca, abarrotados de desejos invisíveis. Os papéis corriam por baixo daquele vidro-muro como cartas extremamente desejadas, como se olha solitário para um relógio de apartamento, esperando alguém. Elas voavam por baixo da porta, em convulsão.

Quando percebi, você estava ao meu lado, por todas as partes, em forma de papéis ao sabor do vento, jogados aos montes ao meu redor, aos meus pés, em minha cabeça e em todo meu corpo.
Um dia então te vi na frente do vidro-limite, pregando seu enorme retrato de feição vazia e olhar fugaz. Durante horas intermináveis pude te ver apenas daquele jeito seco e, com a cabeça deitada ao ombro, comecei a acreditar que você tinha se transformado naquela imagem estática e perturbadora para mim.
Angustiado tomei de ímpeto em minha mão uma outra foto tua, sorridente e cintilante e a colei com toda força sobre a outra imagem que me encarava silenciosa e devastadora. A cola escorria por todas as bordas deixando claro o sangrar daquele rio que se formava impetuoso e que a tudo inunda. Deitado ao chão passei a escrever, acompanhado agora daquele sorriso-seguro que me resguardava como cães de guarda ferozes.
Dias, semanas e meses se passaram. A barba crescia acompanhada da saudade bruta. De repente o vidro explode em minha face cansada, deixando estilhaços por todas as partes do quarto escuro e feridas abertas em meu peito, rosto e mãos. As mãos ensangüentadas não secavam jamais e tive que aprender a escrever daquele jeito, afogando palavras em mares vermelhos. Olhei para o teu lado e você não estava mais lá. Poeira, caneta e papéis me alertaram do seu sumiço. Inerte, me rendi ao visível, ao palpável. Chorei.
Mal sabia eu que você tinha deixado carne e osso e havia se tornado palavra e papel. As gotas que escorriam do meu olho, pois, eram teu excesso e minha essência. O pêndulo nesse momento se quebrava para sempre com o cuco cantando satisfeito, enquanto aquele momento virava fotografia irreversível de minha alma.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Barulho bom

Aquela mão entre os cabelos gritava estridente em seu ouvido, sem deixar nem um instante para o silêncio do corpo. E a cabeça se escondendo entre os ombros, cúmplice do sorriso envergonhado, havia carimbado o peito com uma tinta que não larga.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Labirinto de abraços

Está lá, aturdido em um labirinto com pessoas por todos os lados, abarrotadas de ânsia e tumulto. Além do difícil caminho até uma luz findoura, existem obstáculos humanos.
Maiores que quaisquer paredes grossas e duras, ele recebe pancadas fortes de almas.(necessárias)
Sangue escorre pelas mãos.
Escorrega suave até a ponta do dedo indicador. Eis que limpa o dedo carne-viva em sua língua esponja-de-desejo.
Um gosto que arde. bom e forte.

De repente está só entre paredes. Segue por alguns corredores e vê uma luz vermelha incandescente que o cega. Mesmo no escuro, aquela luz vermelha-viva acende como fogo em sua cabeça. Ele então corre, sem medo que seus ossos sejam estraçalhados por peitos de concreto.

Quando seu extinto ríspido o pára, a visão retorna e o vazio reina.
Mas junto aos seus pés feridos encontra uma taça de champagne amarela-saudade.
Dentro,
saliva, água doce do apetite;
lágrima, água salgada de gozo e dor.

Junto com a taça percebe marca de mãos que o ampara.
Agarram seus dedos como nó.
Sente um sorriso naquele alicerce de sombra.

Uma claridade frouxa de pôr-do-sol
Irrompe em mãos; abrigo de candura.
Sol caindo significaria fim do dia,
ou noite que precede sol da manhã?
Essas mãos pareciam o segurar com força.
E o Labirinto se faz jardim de rosas.
As paredes, braços.
Os caminhos, carinho.
Reguemos abraços, pois.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Ave-Poesia

Hoje pela manhã andava suado e desatento na manhã corriqueira das ruas tranquilas de seu bairro. Pensativo, com olhos abertos mas que não enxergavam o caminho, caminhava. Um canto, no entanto, o faz cair do transe e buscar ansioso o dono daquele soar de vida. No meio de uma grande árvore estava lá ele. Pequeno e azul-manhã, cantando um bom-dia despercepido e belo. Ele Dobrou sua cabeça - como sentando numa poltrona à espera do espetáculo - e pôs-se a admirar o pequeno azul no meio do enorme emaranhado verde-marrom que derramada sombra e alívio em sua cabeça. Lembrou-se de outro momento, pois.

Um dia quando pequeno, ele estava em sua primeira aula de história. O prefessor pede para que cada aluno escrevesse em um pedaço de Papel o animal que desejasse ser. Ele arranca um pedaço de papel almaço-ansioso e escreve sem temor. Todos entregam ao professor que se põe a interpretá-los, segundo seus animais adotados ingenuamente. Escuta até hoje aquelas palavras bestas, mas que para ele reverberavam como poema lido ao pé do ouvido.
"Pássaro. Este aqui tem ânsias de Liberdade. Vontade de voar"
Sorriu.

Hoje ele voou. Voou e lá em cima, na parte branca e macia do céu, encontrou alguém. Olhou pro lado, era um senhor com óculos de armação grande como sua alma (e suas asas). Ainda entre ventos, juntos leram um poema do inesperado senhor. Uma onda devastadora de emoção correu do cóccix à nuca, num piscar de olhos fortuitos. Os olhos piscaram, com ele orvalho. Olhou bem para aquela face terna e o reconheceu. E se reconheceu. Era ele, sem dúvida...Um amigo que conhecera em outra pele, há semanas atrás, também por meio de palavras fortes. Se abraçaram durante a leitura, durante horas.
(Confessara ser ele o passarinho que havia cantado hoje pela manhã)

Esqueceram-se do relógio cronológico,
Eles já eram amigos a muito tempo.

O encontrara por palavras,
por fortaleza.

O conhecera por descendência.

Ao poeta Zé Maria, apresentado por poesia.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Soluço Salutar



"Um grito mora em mim.
À noite, ele se afoita,
Procurando com suas presas algo para amar." Sylvia Plath



Uma pancada seca e forte
Fez-me sentir monstro revelado.
Soluços salutares invadem a madrugada
Será que fora sempre assim
E no fundo não enxergava esse lado
Escuro, no espelho que o desenhava claro?

Não posso mais reivindicar amores
Não tenho cara para acariciar o rosto
No instante apenas pretendo me retratar
Expor-me num auto-retrato menos sal.

Não quero beijos nem cafuné-marrom
Não mereço abraço nem mãos tácitas
Só preciso de uma Boca-juri
Pra me dizer pronta, mesmo longe
Que não sou vereda com grama-abismo
Não pedia encanto desabando banal.

Quero sol, olhos abertos e queimadura.
Céu ameno-azul sem estrelas maduras.
Apenas um véu descoberto com coisas sujas.
Ou pelo menos manchas que saem esdrúxulas.

Noite nebulosa que enterra estrelas
Tela iluminada que desterra fragilidades
Elogios confundidos com promiscuidade
Água-mansa que descobre lençol-saudade.
No mais, se muito te sugo;
é Amizade.

Árvore - Sylvia Plath

Fui ao fundo — ela diz. Sei pela minha raiz mestra:
É o que temias.
Eu não temo: já estive lá.

É o mar o que em mim escutas,
E seus desassossegos?
Ou a voz do nada, não era essa tua loucura?

O amor é sombra larga.
Como mentes e em seu encalço choras
Ouça: estes sã seus cascos: disparou como cavalo.

Noite afora galoparei assim, impetuosamente,
Até tua cabeça virar pedra e o travesseiro a relva,
Ecoando, ecoando.

Ou devo te mostrar o som dos venenos?
É a chuva agora, aquietando.
E este é seu fruto: metálico como arsênico.

Sofri as atrocidades dos poentes.
Escorchados à raiz
Meus filamentos rubros secam e estendem dedos de arame.

Agora me desfaço em pedaços que voam como paus.
Uma ventania dessa violência
Não suporta nada ao redor: preciso gritar.

A lua também não tem pena: me arrastaria
Cruelmente, mirrando-me.
Sua radiância me lesa. Ou quem sabe se a captei.

Deixo que se vá. Deixo que se vá
Diminuída e chocha como se após cirurgia radical.
Como teus maus sonhos me possuem e obsedam.

Um grito mora em mim.
À noite, ele se afoita,
Procurando com suas presas algo para amar.

Essa coisa preta me aterroriza
Dormitando em mim
O dia inteiro sinto seu retorcer fofo, suas felpas, sua malignidade.

As nuvens passam e se dispersam.
São aquelas as faces do amor, aquelas pálidas irremediáveis?
Para isso é que meu coração se turba?

Não sou capaz de outro conhecer.
O que é isto, este rosto
Tão criminoso em sua sufocação de galhos? —
A insídia de seus ácidos beija.
É o que petrifica o querer. São falhas isoladas e tardonhas
Que matam e matam e matam.

(19-IV-1962, tradução de Vinicius Dantas)

[Sylvia Plath; Ela me mata. desmata meu terreno ameno.]

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Abraço Vermelho

“Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. Ou quando começa: certos sustos na boca do estômago. Como carrinho de montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora.
(...)
Vermelhos - mais que vermelhos: rubros, escarlates, sanguíneos...” Caio Fernando A.

Um bom banho com água quente momentaneamente percorre sua cabeça, sangra por todo o corpo lentamente e escorre pelo ralo junto com a ansiedade que impregnava seu corpo. O ônibus lotado, no entanto, trata de dar-lhe de volta o suor e inquietação de que antes fugira, pregados como gosto de cerveja boa. Agora todo um mar, que nem um vento noturno-frio conseguiria secar.

Chega no andar primeiro da livraria amarela e como sempre vai pra sessão de cinema. Assiste livros, irrequieto. Envia uma mensagem para que ela fosse ao seu encontro. Sim, acredita nisso? Passara o tempo todo se escondendo, pintando quadros sem assinar, esperando a hora de vê-la sem ser visto e de repente... quis ser encontrado primeiro. Vai entender. Ela desceu as escadas, cada andar em um segundo (cada segundo uma gota de suor), e foi abraçá-lo. Ele estende os braços sorridentes e de repente a vergonha lhe dá um encontrão no ombro, daqueles de derrubar qualquer zagueiro central, tirando-o do caminho do abraço-mata-ansiedade. Ele abismado vê sua vergonha abraçá-la descaradamente, sem lhe dar satisfação. Que Safada! [A vergonha, não ela].

No entanto seguiram ao segundo andar, à segunda fala, ao segundo instante, aos segundos mornos da terça-feira literária. Hilda Hilst era quem ditava as ondas daquele mar noturno e silencioso, linda sacana e forte como sempre.

Recebera inesperadamente uma foto dela – não da Hilda - em papel de xerox (preto-e-branca, mas com ares coloridos) e sentara ao seu lado. Não conseguira falar muito, então fitou a foto. Encarava-a estática naquele papel e tentava se comunicar. Oi, tudo bem? O que achou? O silêncio dizia algo confuso, sempre duvidoso. O tempo passava e os não-olhares o sufocavam.

Ele olhava pros sapatinhos vermelho-ronquenrrou. Voltava para a foto. Olhava pros sapatos. Para os cadarços vermelhos. Olhou tanto que alcançou as meias. A alma ficou longe, lá no café expresso da mesa, que sorria pro frapuccino ao lado. Seria ele um ao vivo e outro no vidro? Saídas, banheiros e cigarros. Ele se esvaiu em fumaças prazerosas, loucas por novos abraços.

Tudo termina atrasado e ele vai ler uma poesia na parede. Parecia uma profecia que pós-via seu passado e previa seu futuro. Continha as palavras: Lua, noite, tristeza, ilusão, boêmios, sorrisos.

E tudo acabou assim, com detalhes que nem os benditos profetas da amizade conseguiriam enxergar: samba dançando com filmes, endereços escritos em textos, livros abraçados com cerveja, estórias acariciando orvalhos nos olhos, véus recaídos no chão barulhento, sorriso admirando outro sorriso. Igual, pois ambos eram de satisfação que não cabia mais no franzino bar.

E no fim do caminho – que tinha ares de começo -, despontava ainda um horizonte ameno e inexplorado, como a palma de uma mão estendida, com o dedo indicador vermelho-escarlate indo e voltando. Surge enfim, o primeiro abraço, longo e de olhos fechados, embriagados, que ainda o seguram neste exato momento. E pelo jeito Acho que não largarão. Nunquinha.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Barba Branda

Ele escrevera num papel de anotações de telefone:

"Tenho sessenta anos, no entanto me sinto como três rapazes de vinte. E juntos não me deixam parar. Nem de madrugada. Aliás, a madrugada é a preferida por todos. Só que um teima em querer escrever durante horas a fio em minha cabeça. E ele aparece apenas em temporadas, em tempestades, algumas semanas e pronto. Parece zarpar em algum cruzeiro rumo à África e só volta quando sinto vontade de vomitar. Com ele eu vomito tudo. Eu todo."

Engraçado, ele nunca tinha escrito nada. E de repente soltou isso. Talvez escrevesse com o corpo vagando por aí ou escrevia com a boca, sussurrando em ouvidos impressionáveis. O que se sabe é que nesse dia escrevera a punho mesmo, rapidamente – como se tivera incorporado – e pronto. Só isso. Saiu pela porta, atrás de seu emprego-de-fim-de-ano. Já que não tinha possibilidades de hora-extra ou regalias de décimo-terceiro.

Passou em frente a um shopping e uma pequena placa enferrujada no canto de uma loja dizia: “Precisamos de papai Noel. Tratar aqui mesmo”. Rápido e inconscientemente irônico. Pensando em entrar, ele se olhou num espelho que nunca falta em shopping: Magro, desbarbado. apenas sua barriga de cerveja e sua velhice serviriam ao Papai Noel modelo. Mas ele entrou. Ia entrar de qualquer jeito. Quem sabe as tendências de papais-noéis tenham mudado. Ele sabia que não, mas adorava acreditar que sim. Ouriçava-se com essas subversões imaginárias recorrentes.

“Bom dia. Vocês ainda estão precisando de Papai Noel?”.
“Sim, sim. E com urgência. Você estaria interessado?” Falou uma atendente com olhar surpreso de quem não recebera ninguém interessado. Ele Pensou logo que eles deveriam pagar muito mal. Muito mesmo. Mas respondeu que estava interessado. Ele estava desesperado, tinha que admitir (pelo menos para si mesmo).

Uma longa conversa aconteceu com a gerente da loja de brinquedos e de repente ele sai carregando uma enorme roupa vermelha no braço direito, cobrindo metade de seu corpo. Com aquele velho sorriso, ao mesmo tempo de deboche e satisfação. Sim, pois esses dois sentimentos se confundiam.

Chegou em casa e jogou aquela imensidão de veludo vermelho em cima do sofá, ficando apenas com uma peça na mão: a barba. Aquela barba grande, branca e macia. Seus dedos entravam naquele emaranhado alvo como garotos pulando em piscinas enormes e azuis. Nunca tinha tido barba. Nunca o deixaram ter. Primeiro os pais, por quererem ver sempre o filho com cara limpa, esbanjando sucesso. Depois a mulher, buscando sempre aspecto de limpeza. E por fim o chefe, impondo uma falsa dignidade estampada na cara, que por dentro ele próprio não possuía.

Mas naquele dia ele teria barba. E não precisaria deixar crescer. Esperar duas semanas ou três meses? Não. Era só puxar o elástico até a nuca e regozijar-se. Custaram, mas vieram. Antes brancas do que nunca. Sentou-se no sofá e com a cabeça deitada para trás acariciava aquela barba só dele. Ali, naquele momento, aquela era a mais verdadeira barba que qualquer aspirante a papai Noel pudesse sonhar em ter.

Nasce o sol e os pássaros cantam perto da janela da sala, onde havia dormido jogado ao sofá. Eram seis horas e já tomava banho para vestir sua grande roupa veludo-vermelha. Colocou-a dentro de uma grande sacola e levou para vestir-se no shopping, já que não pretendia andar de velho Noel pela rua. O deboche se sobressairia. Quando saiu, no entanto, pensou na possibilidade de estar a rigor natalino e ser indagado por qualquer criança-não-frequentadora-de-shoppings, que provavelmente faria um pequeno pedido e ao menor gesto de atenção, sentiria-se satisfeita. Voltou e vestiu-se em casa. Foi bom demais o caminho. Recebeu tapas nas costa na parada de ônibus, não pagou passagem, recebeu dezenas de bom dias e vários abraços infantis. Sem contar no abraço de uma sorridente senhora.

Mas a hora do trabalho havia chegado. Sentou-se em uma cadeira que se pretendia de papai Noel, mas na verdade parecia da sala de janta da gerente. Não deu importância. Começou a receber as crianças no colo, uma a uma, pequenas e tranqüilas. Só um pequeno buliçoso tentara infernizar-lhe a vida puxando seu bem maior: a barba. Tentou, tentou, até que o conseguiu tirar do sério. Tocara em seu ponto fraco: “Se puxar de novo menino, vou comer teu cú”. Soltou ele quase que sem querer – quase – porque foi querendo. Que papai Noel filho da puta eu sou, pensou ele enquanto ria por dentro e esperava atônito a reação do menino ou dos pais. O garoto saiu correndo meio assustado. E o Papai Noel ria-se com um autêntico “rourourou” irônico.

Já no fim da tarde, depois de mais habituais pedidos de crianças e simpatias do bom velho, sentado em sua cadeira ele ouve de uma discussão. Era a gerente da loja impedindo que uma criança fosse pra fila do papai Noel, pois os pais não tinham comprado presentes na loja. Ele levanta-se rápido e ansioso da cadeira e vai ao encontro da confusão. Tenta convencer a gerente a deixar a pequena menina entrar, encarnando o espírito e dizendo que ela não teria o direito de impedir a garota de falar com ele, Papai Noel. Ela, rude, não aceitava qualquer acordo fora das regras mercantis e o bom velhinho se emputece. Difama a loja e de forma corajosa insulta fortemente a intransigente gerente – puta, safada e hipócrita estavam entre os adjetivos -. Antes disso, lógico, ouvira o sussuro de desejo da pequena garotinha e se prontificara a presenteá-la. Com certeza aquela menina ficara orgulhosa com o enfrentamento fiel de seu papai Noel.

Ao fim de tudo ele rasga a roupa em meio ao shopping já aturdido e tira todos os adereços do corpo. Estranhamente não consegue arrancar a barba. Puxa, tenta, arranha e ela não sai. Depois daqueles momentos e dificuldades que enfrentara por todo o dia, ela havia fincado território em seu rosto suado e brando. Havia Crescido. A barba e ele.

A água da vida

Em Francês, cachaça é chamada de L´eau de la vie,ou seja, A água da vida.

Espertos esses franceses. Sabem aproveitar a vida como eu.

Très gaieté

[Acabei de comer e em seguida tomei uns 3 copos d´água. A sede frenética me deixou arfando. Vou ali fazer a digestão pra ver se desentope a veia da inspiração.]

Já volto.


quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Pintura Anônima

João Miguel acabara de pintar um quadro sem assinatura. Expôs em uma galeria de um amigo de infância – só assim conseguiria tal feito – pedindo-lhe total descrição quanto a autoria do quadro. O amigo um tanto confuso questiona o que responder caso perguntem sobre o pintor. “Diga que o artista esqueceu de assinar, mas que você irá averiguar em breve. Li que acontecera isso certa vez com Dalí ”. Sorrateiramente na abertura do espaço, João repousa num pequeno banco, bem vergonhosamente semelhante àqueles de ordenhar vacas, ao lado de seu quadro, a uma certa distância milimétrica que não o faria ser notado e na qual estrategicamente ouviria tudo. Ali abriu um livro de bolso.

De repente chega um casal que observa aquela pintura anônima atenciosamente e após alguns segundos comentam: “lindo, não?”. “Demais... tanta força e desejo transmutados em um pequeno quadro. As tintas parecem não caber de tanta intensidade”. João se arrepia todo e orvalhos se formam no canto do olho.

Pouco tempo depois um rapaz pára. Ultrapassa a linha limite de observação dos quadros e toca a tinta dura em alto relevo do quadro de Miguel. Por alguns segundos ele prende a respiração. A saliva seca. Pensa em impedir tal impulso do rapaz, mas prefere manter-se no anonimato à meia distância. O rapaz volta, se distancia do quadro e olha como buscando entender aquela imagem, um emaranhado de cores avulsas. Olha, olha. Franze a testa e sussurra para si mesmo: “Que porra é essa?”. João inesperadamente sorri, segurando-se para que uma risada sua não chegasse aos ouvidos do rapaz.

Cada pessoa que chegava e parava na frente de seu quadro fazia com que Miguel se arrumasse todo, como que procurando uma posição melhor para ouvir bem um show. Um a um ele foi escutando e guardando na memória cada opinião, crítica, riso, olhar, choro, deboche, desdém, comentário, silêncio. Sim, pra ele o melhor momento não teve palavras. Uma senhora de uns 50 anos parou. Virou levemente a cabeça sobre o ombro direito, abriu um sorriso de satisfação, suspirou como que lembrando de algo seu – e apenas seu – e balançou a cabeça positivamente, maravilhada. Ela pode ter abstraído para um velho amor e nem ter notado o quadro de Miguel, mas para ele foi a glória. “E daí? Ela pensou na paixão em frente ao meu quadro. Não daquele quadro enorme de arte contemporânea na entrada da exposição.

Depois de horas sentado sem ler o livro aberto, João estava de peito lavado. Quem o vira, pensava que acabara de ler o melhor livro de sua vida. De certa forma. Fim da exposição, o salão já um pouco escuro, apenas funcionários. Ele calmamente se levanta, retira o quadro da moldura e vai a caminho da saída. Anda até sua casa, chega ao seu pequeno quarto, onde dois homens de branco o esperam. O acompanham tranqüilamente com as mãos deitadas em seus ombros, um de cada lado, enquanto Miguel repõe o quadro em sua parede, ao lado da cama de lençóis marrom-desarrumados. Ele deita e dorme com um sorriso no canto da boca. E mais uma noite se passa, agradável e morna, no hospital psiquiátrico Jardim das Acácias.