sexta-feira, 25 de março de 2011

Entre sonhos



Eu venho das estradas negras de sabor. A cada metro elas me contavam segredos sobre mim e sobre o mundo. Ao fechar os olhos e degustar a solidão, fiz-me cada vez mais forte, multidão. Mas as lacunas frágeis continuavam lá, pois mesmo a maresia mais doce nos desgasta um tempo ou outro. Naquelas pequenas cadeiras vazias, naquela rede folgada. Ferrugem no peito.

Com a escuridão, no entanto, aprendi a tatear. Sentir todas as partes do corpo, os poros, sinais, suor, feridas, calor. Escutei a respiração, aquela mesma que ao correr acelerada revelava a fragilidade humana. Senti o abraço mais nítido de todos durante aquele apagão que tomou léguas e escureceu o quarteirão dentro de mim. Aquele mesmo que nunca deixei de percorrer, pois a cada esquina encontrava novas mãos, fossem erguidas ou estendidas. Caminhos de linhas tortas.

Sentado pensei em quanta raiva joguei ao mar, nos momentos em que deveria tê-las posto a navegar, nos mais alvoroçados mares, naqueles braços de mar que me levavam. Faltaram-me roxidão no olhos, marcas no corpo, queimadura na pele? Não. A saliva que expelia da boca estava numa outra língua, que poucos conseguiam traduzir. As lutas, os gritos e fúrias se manifestavam de outra forma. A ligação com aqueles personagens infames mostrava a subversão que o redemoinho pretendia alcançar. Homens dormindo sob viadutos, mulheres seminuas nas esquinas, bêbados sentados na calçada. Eram todos parte de sua família. Faziam companhia e parte de sua luta, poética e podre. Delicada e cruel. Essenciais para o despertar da indignação. Pequenas pedras de revolução. Desfaziam-se dentro de minhas veias, erguendo pêlos e ímpeto. Estava lá, mais latente do que nunca, com os olhos fechados, mas de ouvidos sempre atentos. Enquanto todos aplaudiam o elenco no palco principal, atrás das cortinas nós segurávamos uma corda forte, despercebida e silenciosa, mas também imprescindível.

Se hoje a dúvida me toma o coração e persegue meu cruzar de braços racional, ela será bem recebida, pois traz consigo múltiplas possibilidades. No deserto tenho quantos caminhos quiser traçar, tantos ventos como quiser recebê-los. Se me aflijo, pois não sinto dedos entre os meus, penso naqueles que estão sempre resguardando meu coração. Inverno ou verão.

Aquele sussurro que me aconselha firme talvez se equilibre em corda bamba. A experiência dessas travessias me diz que não devo negar um sentimento. Ele é como água em nossas mãos, como sol que adentra celas com a mesma intensidade. Não viro as costas para ele, então. Mas seu rosto se espalhou, como pintura derretida caminhando pelo chão. Toda aquela terra foi pintada com cores mais fortes, arte bruta misturada às outras da paixão. Percebera então que o quadro não precisaria ser mais seu. A fotografia dos olhos continuava na pequena e delicada caixa preta, guardada no bolso frouxo da calça que mais gostava. O sentimento transformou-se em negativos. Queria a latência, não mais revelação. Nesse tempo ansioso e suspenso, a imagem não cessava de correr todos os riscos, todos os sonhos. À flor da pele, sem papel ou tinta, colecionava memórias. E assim nascia outro sol, sem a lua se pôr, sem a despedida das estrelas.

A visão em cima da caixa-d´água, a companhia que mesmo em silêncio resolve qualquer dor, o abraço sobre a mesa, a bicicleta sem freios, o almoço em beira de estrada, o mapa aberto no retrovisor, a varanda da rua de calçamento, as pedras sob o mar, o navio encalhado, o suor abastecido, o sorriso que não sabe dançar.

Álbuns se acumulam no peito, aonde o vento nunca parou de soprar.