quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Barba Branda

Ele escrevera num papel de anotações de telefone:

"Tenho sessenta anos, no entanto me sinto como três rapazes de vinte. E juntos não me deixam parar. Nem de madrugada. Aliás, a madrugada é a preferida por todos. Só que um teima em querer escrever durante horas a fio em minha cabeça. E ele aparece apenas em temporadas, em tempestades, algumas semanas e pronto. Parece zarpar em algum cruzeiro rumo à África e só volta quando sinto vontade de vomitar. Com ele eu vomito tudo. Eu todo."

Engraçado, ele nunca tinha escrito nada. E de repente soltou isso. Talvez escrevesse com o corpo vagando por aí ou escrevia com a boca, sussurrando em ouvidos impressionáveis. O que se sabe é que nesse dia escrevera a punho mesmo, rapidamente – como se tivera incorporado – e pronto. Só isso. Saiu pela porta, atrás de seu emprego-de-fim-de-ano. Já que não tinha possibilidades de hora-extra ou regalias de décimo-terceiro.

Passou em frente a um shopping e uma pequena placa enferrujada no canto de uma loja dizia: “Precisamos de papai Noel. Tratar aqui mesmo”. Rápido e inconscientemente irônico. Pensando em entrar, ele se olhou num espelho que nunca falta em shopping: Magro, desbarbado. apenas sua barriga de cerveja e sua velhice serviriam ao Papai Noel modelo. Mas ele entrou. Ia entrar de qualquer jeito. Quem sabe as tendências de papais-noéis tenham mudado. Ele sabia que não, mas adorava acreditar que sim. Ouriçava-se com essas subversões imaginárias recorrentes.

“Bom dia. Vocês ainda estão precisando de Papai Noel?”.
“Sim, sim. E com urgência. Você estaria interessado?” Falou uma atendente com olhar surpreso de quem não recebera ninguém interessado. Ele Pensou logo que eles deveriam pagar muito mal. Muito mesmo. Mas respondeu que estava interessado. Ele estava desesperado, tinha que admitir (pelo menos para si mesmo).

Uma longa conversa aconteceu com a gerente da loja de brinquedos e de repente ele sai carregando uma enorme roupa vermelha no braço direito, cobrindo metade de seu corpo. Com aquele velho sorriso, ao mesmo tempo de deboche e satisfação. Sim, pois esses dois sentimentos se confundiam.

Chegou em casa e jogou aquela imensidão de veludo vermelho em cima do sofá, ficando apenas com uma peça na mão: a barba. Aquela barba grande, branca e macia. Seus dedos entravam naquele emaranhado alvo como garotos pulando em piscinas enormes e azuis. Nunca tinha tido barba. Nunca o deixaram ter. Primeiro os pais, por quererem ver sempre o filho com cara limpa, esbanjando sucesso. Depois a mulher, buscando sempre aspecto de limpeza. E por fim o chefe, impondo uma falsa dignidade estampada na cara, que por dentro ele próprio não possuía.

Mas naquele dia ele teria barba. E não precisaria deixar crescer. Esperar duas semanas ou três meses? Não. Era só puxar o elástico até a nuca e regozijar-se. Custaram, mas vieram. Antes brancas do que nunca. Sentou-se no sofá e com a cabeça deitada para trás acariciava aquela barba só dele. Ali, naquele momento, aquela era a mais verdadeira barba que qualquer aspirante a papai Noel pudesse sonhar em ter.

Nasce o sol e os pássaros cantam perto da janela da sala, onde havia dormido jogado ao sofá. Eram seis horas e já tomava banho para vestir sua grande roupa veludo-vermelha. Colocou-a dentro de uma grande sacola e levou para vestir-se no shopping, já que não pretendia andar de velho Noel pela rua. O deboche se sobressairia. Quando saiu, no entanto, pensou na possibilidade de estar a rigor natalino e ser indagado por qualquer criança-não-frequentadora-de-shoppings, que provavelmente faria um pequeno pedido e ao menor gesto de atenção, sentiria-se satisfeita. Voltou e vestiu-se em casa. Foi bom demais o caminho. Recebeu tapas nas costa na parada de ônibus, não pagou passagem, recebeu dezenas de bom dias e vários abraços infantis. Sem contar no abraço de uma sorridente senhora.

Mas a hora do trabalho havia chegado. Sentou-se em uma cadeira que se pretendia de papai Noel, mas na verdade parecia da sala de janta da gerente. Não deu importância. Começou a receber as crianças no colo, uma a uma, pequenas e tranqüilas. Só um pequeno buliçoso tentara infernizar-lhe a vida puxando seu bem maior: a barba. Tentou, tentou, até que o conseguiu tirar do sério. Tocara em seu ponto fraco: “Se puxar de novo menino, vou comer teu cú”. Soltou ele quase que sem querer – quase – porque foi querendo. Que papai Noel filho da puta eu sou, pensou ele enquanto ria por dentro e esperava atônito a reação do menino ou dos pais. O garoto saiu correndo meio assustado. E o Papai Noel ria-se com um autêntico “rourourou” irônico.

Já no fim da tarde, depois de mais habituais pedidos de crianças e simpatias do bom velho, sentado em sua cadeira ele ouve de uma discussão. Era a gerente da loja impedindo que uma criança fosse pra fila do papai Noel, pois os pais não tinham comprado presentes na loja. Ele levanta-se rápido e ansioso da cadeira e vai ao encontro da confusão. Tenta convencer a gerente a deixar a pequena menina entrar, encarnando o espírito e dizendo que ela não teria o direito de impedir a garota de falar com ele, Papai Noel. Ela, rude, não aceitava qualquer acordo fora das regras mercantis e o bom velhinho se emputece. Difama a loja e de forma corajosa insulta fortemente a intransigente gerente – puta, safada e hipócrita estavam entre os adjetivos -. Antes disso, lógico, ouvira o sussuro de desejo da pequena garotinha e se prontificara a presenteá-la. Com certeza aquela menina ficara orgulhosa com o enfrentamento fiel de seu papai Noel.

Ao fim de tudo ele rasga a roupa em meio ao shopping já aturdido e tira todos os adereços do corpo. Estranhamente não consegue arrancar a barba. Puxa, tenta, arranha e ela não sai. Depois daqueles momentos e dificuldades que enfrentara por todo o dia, ela havia fincado território em seu rosto suado e brando. Havia Crescido. A barba e ele.

A água da vida

Em Francês, cachaça é chamada de L´eau de la vie,ou seja, A água da vida.

Espertos esses franceses. Sabem aproveitar a vida como eu.

Très gaieté

[Acabei de comer e em seguida tomei uns 3 copos d´água. A sede frenética me deixou arfando. Vou ali fazer a digestão pra ver se desentope a veia da inspiração.]

Já volto.


quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Pintura Anônima

João Miguel acabara de pintar um quadro sem assinatura. Expôs em uma galeria de um amigo de infância – só assim conseguiria tal feito – pedindo-lhe total descrição quanto a autoria do quadro. O amigo um tanto confuso questiona o que responder caso perguntem sobre o pintor. “Diga que o artista esqueceu de assinar, mas que você irá averiguar em breve. Li que acontecera isso certa vez com Dalí ”. Sorrateiramente na abertura do espaço, João repousa num pequeno banco, bem vergonhosamente semelhante àqueles de ordenhar vacas, ao lado de seu quadro, a uma certa distância milimétrica que não o faria ser notado e na qual estrategicamente ouviria tudo. Ali abriu um livro de bolso.

De repente chega um casal que observa aquela pintura anônima atenciosamente e após alguns segundos comentam: “lindo, não?”. “Demais... tanta força e desejo transmutados em um pequeno quadro. As tintas parecem não caber de tanta intensidade”. João se arrepia todo e orvalhos se formam no canto do olho.

Pouco tempo depois um rapaz pára. Ultrapassa a linha limite de observação dos quadros e toca a tinta dura em alto relevo do quadro de Miguel. Por alguns segundos ele prende a respiração. A saliva seca. Pensa em impedir tal impulso do rapaz, mas prefere manter-se no anonimato à meia distância. O rapaz volta, se distancia do quadro e olha como buscando entender aquela imagem, um emaranhado de cores avulsas. Olha, olha. Franze a testa e sussurra para si mesmo: “Que porra é essa?”. João inesperadamente sorri, segurando-se para que uma risada sua não chegasse aos ouvidos do rapaz.

Cada pessoa que chegava e parava na frente de seu quadro fazia com que Miguel se arrumasse todo, como que procurando uma posição melhor para ouvir bem um show. Um a um ele foi escutando e guardando na memória cada opinião, crítica, riso, olhar, choro, deboche, desdém, comentário, silêncio. Sim, pra ele o melhor momento não teve palavras. Uma senhora de uns 50 anos parou. Virou levemente a cabeça sobre o ombro direito, abriu um sorriso de satisfação, suspirou como que lembrando de algo seu – e apenas seu – e balançou a cabeça positivamente, maravilhada. Ela pode ter abstraído para um velho amor e nem ter notado o quadro de Miguel, mas para ele foi a glória. “E daí? Ela pensou na paixão em frente ao meu quadro. Não daquele quadro enorme de arte contemporânea na entrada da exposição.

Depois de horas sentado sem ler o livro aberto, João estava de peito lavado. Quem o vira, pensava que acabara de ler o melhor livro de sua vida. De certa forma. Fim da exposição, o salão já um pouco escuro, apenas funcionários. Ele calmamente se levanta, retira o quadro da moldura e vai a caminho da saída. Anda até sua casa, chega ao seu pequeno quarto, onde dois homens de branco o esperam. O acompanham tranqüilamente com as mãos deitadas em seus ombros, um de cada lado, enquanto Miguel repõe o quadro em sua parede, ao lado da cama de lençóis marrom-desarrumados. Ele deita e dorme com um sorriso no canto da boca. E mais uma noite se passa, agradável e morna, no hospital psiquiátrico Jardim das Acácias.