João Miguel acabara de pintar um quadro sem assinatura. Expôs em uma galeria de um amigo de infância – só assim conseguiria tal feito – pedindo-lhe total descrição quanto a autoria do quadro. O amigo um tanto confuso questiona o que responder caso perguntem sobre o pintor. “Diga que o artista esqueceu de assinar, mas que você irá averiguar em breve. Li que acontecera isso certa vez com Dalí ”. Sorrateiramente na abertura do espaço, João repousa num pequeno banco, bem vergonhosamente semelhante àqueles de ordenhar vacas, ao lado de seu quadro, a uma certa distância milimétrica que não o faria ser notado e na qual estrategicamente ouviria tudo. Ali abriu um livro de bolso.
De repente chega um casal que observa aquela pintura anônima atenciosamente e após alguns segundos comentam: “lindo, não?”. “Demais... tanta força e desejo transmutados em um pequeno quadro. As tintas parecem não caber de tanta intensidade”. João se arrepia todo e orvalhos se formam no canto do olho.
Pouco tempo depois um rapaz pára. Ultrapassa a linha limite de observação dos quadros e toca a tinta dura em alto relevo do quadro de Miguel. Por alguns segundos ele prende a respiração. A saliva seca. Pensa em impedir tal impulso do rapaz, mas prefere manter-se no anonimato à meia distância. O rapaz volta, se distancia do quadro e olha como buscando entender aquela imagem, um emaranhado de cores avulsas. Olha, olha. Franze a testa e sussurra para si mesmo: “Que porra é essa?”. João inesperadamente sorri, segurando-se para que uma risada sua não chegasse aos ouvidos do rapaz.
Cada pessoa que chegava e parava na frente de seu quadro fazia com que Miguel se arrumasse todo, como que procurando uma posição melhor para ouvir bem um show. Um a um ele foi escutando e guardando na memória cada opinião, crítica, riso, olhar, choro, deboche, desdém, comentário, silêncio. Sim, pra ele o melhor momento não teve palavras. Uma senhora de uns 50 anos parou. Virou levemente a cabeça sobre o ombro direito, abriu um sorriso de satisfação, suspirou como que lembrando de algo seu – e apenas seu – e balançou a cabeça positivamente, maravilhada. Ela pode ter abstraído para um velho amor e nem ter notado o quadro de Miguel, mas para ele foi a glória. “E daí? Ela pensou na paixão em frente ao meu quadro. Não daquele quadro enorme de arte contemporânea na entrada da exposição.
7 comentários:
pra que coisa melhor que inaugurar o blog falando sobre anônimos?
tua escrita é tão leve que quando me dei conta já estava nas linhas finais, não querendo que acabasse tão rápido.
acho que eu sou essa senhora de cinquenta anos.
(li todo o seu texto com olhos de sonho e um sorriso largo de satisfação)
adorei muito demais!
você vai divulgar seu blog?
posso colocar o link no meu?
beijos
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