terça-feira, 22 de junho de 2010

Nos braços do tempo



Em terra estrangeira nosso dinheiro não serve para se alimentar. Mas e se já vivo há muito tempo conhecendo a terra por todos as suas entranhas, me sentindo como árvore nela plantada? Existem problemas que nem mesmo quem lá brotou pode resolver, pois essa terra também procura fertilidade. Mas de uma coisa estou certo: Caminharei por todo seu interior e meu suor pingará naquele chão. E por isso não será apenas água que a fará crescer, mas o adubo do meu sal escondido, que carrego como uma tempestade querendo furar o peito. E todos poderão ver e sentir o gosto do fruto nos braços do tempo.

domingo, 20 de junho de 2010

Doce voz ao homem-bomba



Tadeu gostava de perceber as flores que nasciam no caminho, enquanto corria. Notava mais ainda aquelas que surgiam nos mais difíceis cantos de concreto, nos lugares distantes, em viagens ou visitas. Muitas plantas bonitas, no entanto, se enfraqueciam na varanda de sua casa. Algumas murchavam como seus dedos em banhos prolongados.

Acordava todo dia e fazia um café que enfeitava todos os cômodos de aroma quente. A casa tomava alguns goles e despertava para o dia inteiro. Algumas vezes ele ligava a TV e o jornal de sempre, com as mesmas notícias inventadas, entrava em seus ouvidos e ficava pela porta da saída. Numa manhã fria resolveu trocar de canal. Na tela Madame Satã pulava em rodopios de capoeira, enfrentando as pessoas que o chamavam de negro, pobre e viado. Entrava onde não o queriam, fazia o que não devia. Dançava enfeitado em delicadeza, acariciava e cuspia. Espancado e preso, não parava, fazia arte, batia, batia. A pele de Tadeu se ouriçava e um arrepio lhe saía da alma e tomava a espinha, os braços e nuca. As palmas das mãos se batem emanando energia e os ombros dançam frente e trás num impulso instintivo. Ele precisava daquilo. Foi varrer a casa, mesmo já de paletó e gravata, e começou a juntar mais e mais sujeira. Ao fim um monte de poeira. Procurou um saco, uma caixa e não achou qualquer coisa. O tapete era enorme e cobria toda a sala de estar. Lá o lixo podia ficar.

Tadeu caminhando pela rua olhou para o relógio de pulso que apertava forte seu braço e viu que 12 minutos lhe restavam. Levantou o dedo para o primeiro motorista de ônibus que o enxergou na parada escondida pela árvore frondosa. Ao pôr a mão no bolso para pegar os centavos da passagem, os dedos se afundam em areia. Assustado ele fecha a mão e traz para perto de si. Uma areia cinza e brilhante escorria por todo seu corpo. Os bolsos repletos do pó o deixavam pesado, ainda mais aquele pequeno bolso que ficava em seu peito suado. Sem poder pagar ele desce e segue a pé, lentamente com um peso enorme e estranho. Estava gordo e cansado. Quando chega ao escritório Tadeu se despe e nu prossegue o dia. Foi difícil enfrentar todos aqueles papéis sem escudo algum, um colete à prova de balas que fosse. Mas o ponteiro conseguiu chegar até as dezessete horas, apesar da lentidão do dia.

Chegou a casa e viu o tapete da sala virar montanha. Toda uma tonelada do mesmo pó cinza se acumulava embaixo daquele veludo de marfim. Um brilho carregado que doía os olhos. O susto foi enorme, mas a diferença era que o cansaço não tinha fim. Dormiu trôpego em um sofá inclinado, com os pés no chão e a cabeça nos mais altos céus.

Acorda com um telefone que parecia gritar em seu ouvido como um machado. Era uma voz que conversava e nas entrelinhas queria um amparo. Tadeu depressa pôs uma roupa e saiu de casa na certeza de encontrar a voz em alguma casa ou qualquer esquina. Parou na banca de revistas e comprou uma carteira de cigarros vazios. Ao invés de nicotina, calafrio. Reconheceu na voz de uma bela moça aquela que o chamava ao telefone. Suas mãos se encontraram e o levaram de volta para casa. Chegando eles sentam no sofá já cinza e ele lembra que se esqueceu do fogo. Com o punho cerrado os dedos dela desabrocham um pedaço vermelho. Isqueiro. Ele pega devagar e fixa seu olhar. Ela o fita, seus olhos se abraçam e ele sente um conforto apesar de sentado no canto mais desagradável de todos. Havia poeira por todos os lados, que pouca gente via. Seu dedo desliza e a faísca nasce apesar da lentidão. Tic-tac. O cigarro acende? Explosão. A poeira virou pólvora, a sujeira solidão.

Tudo se perdeu. Foi-se acumulando, passando e ele sempre esquecendo na gaveta sua atenção. Estava lá agora estraçalhada, aos pedaços, como as outras coisas, mas que podiam ser recuperadas com muito trabalho. O estopim estava em suas mãos e toda bomba-relógio ao seu redor. Algumas vozes o alertaram, até mesmo a sua própria. Mas aquele olhar ao seu lado, intacto e doce, lhe dizia sem palavras, que estava lá sempre, não importava o que acontecesse. Bastava que ele não o implodisse. Mesmo sem nada continuaria ao seu lado direito. As contra-atitudes dependiam de suas ações. Ele conseguia perceber em uma gota que se formava, um amor inteiro que não acabava. Abraçaram-se longamente e perceberam que o tempo era curto pra refazer tudo aquilo antes de qualquer chuva, mas não existia relógio que pudesse contar o arrepio na espinha e o orvalho em canto de olho que sentiam juntos. E era nesse tempo que caminhariam. Eternas aquelas mãos, que mesmo diferentes, nasceram para abrigar-se uma na outra. E mesmo com toda aquela poeira ele sentia que sua palma podia ser estendida àquela voz doce que lhe acariciava todos os dias. Ele iria se levantar, reconstruir, correr, correr, correr, sem desistir. Afinal de contas, já havia ganhado o maior troféu de todos. Restava agora mostrar que merecia.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Invisível Armadura


Após longas batalhas como um novato ingênuo, daqueles que correm com a arma sem olhar para os lados, cheguei aos novos fronts com blindagem na alma e olhos por todo o corpo. Qualquer sopro era motivo de atenção e isso me fez cicatrizar antigas feridas. Essa racionalidade, no entanto, me construiu também muros que empatavam minha visão. Tinha que me lançar ao campo do outro para poder fazer valer a roupa que vestia e o coração que carregava. Os muros dos mais fortes passaram a me seguir como cães vira-latas, cujos olhos pediam comida e carinho.

Uma voz do lado de fora me gritava. Um grito que virava sussurro. Então como se me falasse ao ouvido, com o queixo deitado em meu ombro, escuto reconstrução. A cada passo um pedaço ao meu redor caía, deixando a mostra uma parte do meu corpo. A cada gesto da pessoa ao meu lado, minha invisibilidade se tornava mais terna. Ela continuou lá fora por dias a fio, caminhando ao meu lado, mesmo sem notícias minhas atrás daquelas paredes cegas. Mas foram por aqueles gritos mansos, que pude continuar. Pois apesar de tudo não havia teto que me impedisse de ver aquele céu que as palavras me apontavam. O azul sempre esteve lá como ela. O cheiro de girassol com o rosto para cima inundava aquele quarteirão. O tempo, sem relógios nem pêndulos, passava e voltava ao passado. Memórias iam se acumulando como as armas ao chão.

Um dia, caminhando com o olhar cansado, mas com pálpebras em riste, quando menos esperei, estava nu. A neve se espalhava por todos os lados, as nuvens cinzentas me roubavam o azul e meus pés percebiam estar na mais perigosa área da batalha. Pois foi nesse momento que me senti mais aquecido desde o primeiro tiro, o instante que tudo ao redor se azulava com lâminas vermelhas ao fim do céu e a hora que senti maior segurança desde meu primeiro choro. Mesmo sem nada, minha mão direita foi inundada por outros dedos, que se faziam dez. Eles eram minhas roupas, meus muros, minhas armas, minha comida, meu coração. Com força me apertavam e me cobriam como chuva em terra momentaneamente árida, que aos poucos revia frutos acompanhados de flores. Percebi que do lado de fora eu também tinha a oportunidade de ajudar aquelas mãos que passaram dias me esperando. Mesmo longe foi quem me fizeram pular. Voar. A partir de então podia dar tudo de mim para fazê-las felizes.

Foi aí que pude me dar conta de que não precisava de tantas armas, nem tantos olhos. Precisava de palavras, de formigas, de mãos dadas. E sem aquele imenso medo que carregava no bolso como pedras, pude então avistar outros sóis. Mesmo se às vezes me queimavam, me engrossavam a pele e a coragem. E não me escondia mais, pois ao meu lado despido estava o meu amor com um sorriso ao colo e suas mãos que nunca mais deixariam de me vestir.