quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Ondas de vida


Hoje acordei já com o sol bem no meio do céu, ainda descansando da madrugada entre músicas e papéis espalhados na cama. E em plena segunda-feira com ares de domingo, ruas sem carro e o som de passarinhos imperando sobre tudo lá fora, eu escuto o jornal falando do dia da padroeira da cidade; Nossa Senhora da Assunção nas Igrejas e Iemanjá nas areias da praia.

Pego o carro e sigo sozinho ao litoral, pois o mar me chamava. Chego à Praia já no fim de tarde, o sol começando a se esconder no lado oposto ao mar, deixando aquele aspecto de azul manso no céu. Começo a andar pela praia, à procura de alguém de branco, sinal dos filhos de santo. Ando, ando, molhando meus pés na água forte da maré alta e enfim avisto uma saia de renda enfeitando as pernas de uma velha senhora. Percebendo ela ir embora, com seu ramalhete de flores brancas molhadas, sigo o caminho inverso, à procura do fim da celebração.

Aos poucos vou encontrando à beira do mar pequenas oferendas: flores brancas, estátuas, garrafas de champagne. Bons sinais. A maré alta parecia diminuir, abrindo meus caminhos. Nesse instante imaginei você caminhando ao meu lado, nossas mãos dadas. Olhares carinhosos ao mar. Ele sempre me faz lembrar você. Mais a frente um aglomerado de pessoas e batuques começam a ecoar no vento e chegam ao peito. Sorriso no rosto.

A primeira imagem que tenho é de um homem todo de branco, ajoelhado de frente ao mar, com os olhos fechados e as mãos erguidas, a sussurrar palavras ao ouvido de Iemanjá. Me junto em meio à multidão e observo a cantoria, palmas e cumprimentos, ombro à ombro. Crianças, homens, mulheres, cachorros, velhos, pessoas montadas em bicicletas e cavalos assistem à celebração.

Depois de um tempo, com o sol já escondido e o céu escurecendo, me viro ao mar. Pé molhados, respiração funda e olhos cheios da mesma água salgada. O vento nesse momento parece bater mais forte e água se inquieta, me trazendo ao corpo arrepios e boas energias. Respiro novamente fundo e volto ao circulo de tambores intensos. Tiro algumas fotos do entorno, do mar naquele momento, mas não da festa, que me parecia intocável naquele momento.

Num determinado instante a roda se abre um pouco e eu avisto uma velha senhora negra, com uma pequena e delicada criança, de poucos meses, dormindo calma em seu ombro. Enquanto dançava a velha senhora parecia embalar os sonhos daquela pequena delicadeza, que tinha o rosto mais sereno de todo o mundo. Quando a música parou um instante, a senhora se virou devagar e começou a caminhar em direção ao mar. Dois rapazes levantaram respeitosamente a grossa corda de isolamento da roda de cantoria e ela se abaixou sem deixar mover qualquer centímetro a pequena em seus braços.
Chegou à beira do mar e parou. Nesse momento eu tive à minha frente a fotos mais linda que eu poderia tirar, com qualquer câmera que tivesse às mãos. Aquela pequena cabeça recostada no ombro da mãe negra, porto-seguro forte, e olhinhos fechados como se estivera deitada nas nuvens mais aconchegantes. Nuvens de renda. A mãe também com os olhos fechados, repletos de lágrimas e força, enquanto os lábios se movimentavam rapidamente, em orações e pedidos de proteção à pequena e sua longa caminhada, direcionados à Iemanjá, rainha de todos esses mares, bonitos e revoltos.
Porém nenhuma imagem poderia chegar perto de todas as sensações que envolviam aquele momento, de tudo o que ele significava.

A intensidade e a força não poderiam ser enquadradas, nem encaixotadas, nem fixadas em papel algum. Ao invés de empunhar a câmera, a pus de volta no bolso e passei a olhar. Apenas olhar e sentir. Ele viveria dissolvido em minha memória, como as espumas naquela maré. Como um fluxo, andaria em cada poro do meu corpo com a grandeza e intensidade daquele Mar sem fim. Que horizonte algum poderia pôr limite. Ele me encarava, encantador e assustador. Cheio de segredos ao seu redor, os quais eu só poderia descobrir mergulhando de olhos fechados como o daquela criança. Com a confiança dos braços daquela senhora. E com aquelas lágrimas de dor. E de amor. Que as ondas nunca deixariam de trazer.

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