sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Tanto Afeto

    Cometera um erro há muito tempo. Se pode ou não ser considerado erro, não se sabe. Apenas o acompanha desde os primeiros passos de caminhada em vias de mão dupla. Naquelas auto-estradas doces, sempre cometia excessos. Tudo que saía de seus poros pareciam abscessos rompidos que estouravam e se alastravam por ombros, peitos e pessoas. De ponta a ponta transbordava-os de desejos, de forças.
    E em muitos braços não cabia tanto afeto. Tanto olho atento, tantas veias abertas, tanto mar esparramado. Então afastar-se e sentar nas dunas altas era uma precaução, cuidado de mãos cerradas. Num mesmo movimento de pernas caminhando em retorno, o mar se retraía como numa fuga. Como um peito que se esconde tentando pegar todo o ar do mundo. As águas retornavam deixando espumas e distantes se fortaleciam cada vez mais, pra depois quebrar, estourar, assim como mar que arrebenta.
    Daquelas bocas que se abrem por razão dos poros estarem todos juntos e também abertos, dissemina olhos fechados de entrega. Afasta-te apenas um pouco pra poder perceber a imensidão que nos envolve. E não te esqueças disso. Que a luta está dentro de cada grão de areia que a água cobre, pouco a pouco. Mesmo distante não deixe de sentir a febre desse mar. Num vai-e-vem, se quiseres, ele nunca vai secar. Nunca quer cessar.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Nosso mar

O que ficou para trás
O que nos resta ainda mais?

Aquela poesia vermelha
no papel amarelado
Enterrada na gaveta da família
agora escondia também
Destinos. Vencidos. Além.
Mas outros nascem fortes,
ainda bem.

Eles se foram, ela me foi
a coisa mais bonita
desses últimos anos
vividos como dia-a-dia,
bem-te-vi  raiar.

Eles revisitam, respingam
Pisam de novo,
O novo chão.
Removem poeiras,
Afastam as teias
Entre veias e coração.

Trazem bombons de caramelo,
Pérolas de açúcar e saudade.
Lembranças de bolsos fundos,
Carinhos com estampa de avião.

A boca rica de café
e o cheiro de cloro da manhã
na piscina azul e branca
emergem tempos,
em sentimentos por segundo.

E agora em estradas recapeadas
De desejos na pele de flor,
De olhos bem abertos,
De braços mais abertos

Deitados e entregues
nesse imenso asfalto de febre.
Mãos nas costas dançam leves,
tirando o peso das horas.

A ansiedade pelo tempo,
Trouxe você.
E esqueceu pelo caminho
O medo que
queriam nos impor.

Cantamos então que
Amar e mudar as coisas
mesmo sentindo dor,
nos interessam mais.

Ondas de vida


Hoje acordei já com o sol bem no meio do céu, ainda descansando da madrugada entre músicas e papéis espalhados na cama. E em plena segunda-feira com ares de domingo, ruas sem carro e o som de passarinhos imperando sobre tudo lá fora, eu escuto o jornal falando do dia da padroeira da cidade; Nossa Senhora da Assunção nas Igrejas e Iemanjá nas areias da praia.

Pego o carro e sigo sozinho ao litoral, pois o mar me chamava. Chego à Praia já no fim de tarde, o sol começando a se esconder no lado oposto ao mar, deixando aquele aspecto de azul manso no céu. Começo a andar pela praia, à procura de alguém de branco, sinal dos filhos de santo. Ando, ando, molhando meus pés na água forte da maré alta e enfim avisto uma saia de renda enfeitando as pernas de uma velha senhora. Percebendo ela ir embora, com seu ramalhete de flores brancas molhadas, sigo o caminho inverso, à procura do fim da celebração.

Aos poucos vou encontrando à beira do mar pequenas oferendas: flores brancas, estátuas, garrafas de champagne. Bons sinais. A maré alta parecia diminuir, abrindo meus caminhos. Nesse instante imaginei você caminhando ao meu lado, nossas mãos dadas. Olhares carinhosos ao mar. Ele sempre me faz lembrar você. Mais a frente um aglomerado de pessoas e batuques começam a ecoar no vento e chegam ao peito. Sorriso no rosto.

A primeira imagem que tenho é de um homem todo de branco, ajoelhado de frente ao mar, com os olhos fechados e as mãos erguidas, a sussurrar palavras ao ouvido de Iemanjá. Me junto em meio à multidão e observo a cantoria, palmas e cumprimentos, ombro à ombro. Crianças, homens, mulheres, cachorros, velhos, pessoas montadas em bicicletas e cavalos assistem à celebração.

Depois de um tempo, com o sol já escondido e o céu escurecendo, me viro ao mar. Pé molhados, respiração funda e olhos cheios da mesma água salgada. O vento nesse momento parece bater mais forte e água se inquieta, me trazendo ao corpo arrepios e boas energias. Respiro novamente fundo e volto ao circulo de tambores intensos. Tiro algumas fotos do entorno, do mar naquele momento, mas não da festa, que me parecia intocável naquele momento.

Num determinado instante a roda se abre um pouco e eu avisto uma velha senhora negra, com uma pequena e delicada criança, de poucos meses, dormindo calma em seu ombro. Enquanto dançava a velha senhora parecia embalar os sonhos daquela pequena delicadeza, que tinha o rosto mais sereno de todo o mundo. Quando a música parou um instante, a senhora se virou devagar e começou a caminhar em direção ao mar. Dois rapazes levantaram respeitosamente a grossa corda de isolamento da roda de cantoria e ela se abaixou sem deixar mover qualquer centímetro a pequena em seus braços.
Chegou à beira do mar e parou. Nesse momento eu tive à minha frente a fotos mais linda que eu poderia tirar, com qualquer câmera que tivesse às mãos. Aquela pequena cabeça recostada no ombro da mãe negra, porto-seguro forte, e olhinhos fechados como se estivera deitada nas nuvens mais aconchegantes. Nuvens de renda. A mãe também com os olhos fechados, repletos de lágrimas e força, enquanto os lábios se movimentavam rapidamente, em orações e pedidos de proteção à pequena e sua longa caminhada, direcionados à Iemanjá, rainha de todos esses mares, bonitos e revoltos.
Porém nenhuma imagem poderia chegar perto de todas as sensações que envolviam aquele momento, de tudo o que ele significava.

A intensidade e a força não poderiam ser enquadradas, nem encaixotadas, nem fixadas em papel algum. Ao invés de empunhar a câmera, a pus de volta no bolso e passei a olhar. Apenas olhar e sentir. Ele viveria dissolvido em minha memória, como as espumas naquela maré. Como um fluxo, andaria em cada poro do meu corpo com a grandeza e intensidade daquele Mar sem fim. Que horizonte algum poderia pôr limite. Ele me encarava, encantador e assustador. Cheio de segredos ao seu redor, os quais eu só poderia descobrir mergulhando de olhos fechados como o daquela criança. Com a confiança dos braços daquela senhora. E com aquelas lágrimas de dor. E de amor. Que as ondas nunca deixariam de trazer.

domingo, 15 de maio de 2011

Sem precisar


Nosso melhor momento
é o abraço querendo beijo.
Sussurrou ao ouvido.
E sem beijar, sentiu.
Sobre os lábios
o céu pousar.

Mel de maio
Maiô sem laço
Maior detalhe de todos.

Intenso afeto escorre do braço
e deságua no mar imenso
que esse mundo traz.
E lava sem precisar limpar.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Entre sonhos



Eu venho das estradas negras de sabor. A cada metro elas me contavam segredos sobre mim e sobre o mundo. Ao fechar os olhos e degustar a solidão, fiz-me cada vez mais forte, multidão. Mas as lacunas frágeis continuavam lá, pois mesmo a maresia mais doce nos desgasta um tempo ou outro. Naquelas pequenas cadeiras vazias, naquela rede folgada. Ferrugem no peito.

Com a escuridão, no entanto, aprendi a tatear. Sentir todas as partes do corpo, os poros, sinais, suor, feridas, calor. Escutei a respiração, aquela mesma que ao correr acelerada revelava a fragilidade humana. Senti o abraço mais nítido de todos durante aquele apagão que tomou léguas e escureceu o quarteirão dentro de mim. Aquele mesmo que nunca deixei de percorrer, pois a cada esquina encontrava novas mãos, fossem erguidas ou estendidas. Caminhos de linhas tortas.

Sentado pensei em quanta raiva joguei ao mar, nos momentos em que deveria tê-las posto a navegar, nos mais alvoroçados mares, naqueles braços de mar que me levavam. Faltaram-me roxidão no olhos, marcas no corpo, queimadura na pele? Não. A saliva que expelia da boca estava numa outra língua, que poucos conseguiam traduzir. As lutas, os gritos e fúrias se manifestavam de outra forma. A ligação com aqueles personagens infames mostrava a subversão que o redemoinho pretendia alcançar. Homens dormindo sob viadutos, mulheres seminuas nas esquinas, bêbados sentados na calçada. Eram todos parte de sua família. Faziam companhia e parte de sua luta, poética e podre. Delicada e cruel. Essenciais para o despertar da indignação. Pequenas pedras de revolução. Desfaziam-se dentro de minhas veias, erguendo pêlos e ímpeto. Estava lá, mais latente do que nunca, com os olhos fechados, mas de ouvidos sempre atentos. Enquanto todos aplaudiam o elenco no palco principal, atrás das cortinas nós segurávamos uma corda forte, despercebida e silenciosa, mas também imprescindível.

Se hoje a dúvida me toma o coração e persegue meu cruzar de braços racional, ela será bem recebida, pois traz consigo múltiplas possibilidades. No deserto tenho quantos caminhos quiser traçar, tantos ventos como quiser recebê-los. Se me aflijo, pois não sinto dedos entre os meus, penso naqueles que estão sempre resguardando meu coração. Inverno ou verão.

Aquele sussurro que me aconselha firme talvez se equilibre em corda bamba. A experiência dessas travessias me diz que não devo negar um sentimento. Ele é como água em nossas mãos, como sol que adentra celas com a mesma intensidade. Não viro as costas para ele, então. Mas seu rosto se espalhou, como pintura derretida caminhando pelo chão. Toda aquela terra foi pintada com cores mais fortes, arte bruta misturada às outras da paixão. Percebera então que o quadro não precisaria ser mais seu. A fotografia dos olhos continuava na pequena e delicada caixa preta, guardada no bolso frouxo da calça que mais gostava. O sentimento transformou-se em negativos. Queria a latência, não mais revelação. Nesse tempo ansioso e suspenso, a imagem não cessava de correr todos os riscos, todos os sonhos. À flor da pele, sem papel ou tinta, colecionava memórias. E assim nascia outro sol, sem a lua se pôr, sem a despedida das estrelas.

A visão em cima da caixa-d´água, a companhia que mesmo em silêncio resolve qualquer dor, o abraço sobre a mesa, a bicicleta sem freios, o almoço em beira de estrada, o mapa aberto no retrovisor, a varanda da rua de calçamento, as pedras sob o mar, o navio encalhado, o suor abastecido, o sorriso que não sabe dançar.

Álbuns se acumulam no peito, aonde o vento nunca parou de soprar.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Quantos sóis

Messias havia caído naquela lama, após tropeçar em algumas raízes escondidas no labirinto verde. O franzino menino de nome vigoroso abria os olhos, enquanto uma mão se estendia procurando ajudá-lo. Era um menino que nem ele, só que de olhos mais puxados, pele escura e cabelos esguios. Falava uma mistura de português, espanhol e outras palavras que Messias não conseguia identificar, mas achava muito bonito.

Ele então se levantou ainda sujo e seguiu aquele desconhecido que tinha ares de amizade para sempre. Conhecia cada árvore, cada bicho e cada buraco daquela terra. Corria assim como Messias fazia descalço nos asfaltos de domingo pela manhã, ou como se estivera descendo uma ladeira de bicicleta, com os olhos fechados e o coração sem freios.

Só em correr junto, já sentia uma cumplicidade única. Chegaram a um campo de barro, com traves sem redes e começaram ao mesmo tempo um jogo sem bola. Dribles magníficos, passes mágicos e desejos de chutar com força de rasgar o mundo.

Depois se embrenharam na mata de novo e passaram dias. Correndo, se cortando, sorrindo, levantando outros que caíam, jogando, gritando. Os pés confundiam-se com as raízes que antes tropeçavam e agora tinham a cor de folhas secas. O corpo verde, a cabeça da cor de céu. Não queriam reduzir toda aquela potência de vida às mesmas e velhas questões de sempre, trancadas dentro de casa. Precisavam era dar vazão àquela energia latente que emanava de cada poro. Queriam mesmo era fechar os olhos e mesmo assim continuar enxergando nitidamente aquele maravilhoso sol de todas as cores.


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