domingo, 20 de junho de 2010
Doce voz ao homem-bomba
Tadeu gostava de perceber as flores que nasciam no caminho, enquanto corria. Notava mais ainda aquelas que surgiam nos mais difíceis cantos de concreto, nos lugares distantes, em viagens ou visitas. Muitas plantas bonitas, no entanto, se enfraqueciam na varanda de sua casa. Algumas murchavam como seus dedos em banhos prolongados.
Acordava todo dia e fazia um café que enfeitava todos os cômodos de aroma quente. A casa tomava alguns goles e despertava para o dia inteiro. Algumas vezes ele ligava a TV e o jornal de sempre, com as mesmas notícias inventadas, entrava em seus ouvidos e ficava pela porta da saída. Numa manhã fria resolveu trocar de canal. Na tela Madame Satã pulava em rodopios de capoeira, enfrentando as pessoas que o chamavam de negro, pobre e viado. Entrava onde não o queriam, fazia o que não devia. Dançava enfeitado em delicadeza, acariciava e cuspia. Espancado e preso, não parava, fazia arte, batia, batia. A pele de Tadeu se ouriçava e um arrepio lhe saía da alma e tomava a espinha, os braços e nuca. As palmas das mãos se batem emanando energia e os ombros dançam frente e trás num impulso instintivo. Ele precisava daquilo. Foi varrer a casa, mesmo já de paletó e gravata, e começou a juntar mais e mais sujeira. Ao fim um monte de poeira. Procurou um saco, uma caixa e não achou qualquer coisa. O tapete era enorme e cobria toda a sala de estar. Lá o lixo podia ficar.
Tadeu caminhando pela rua olhou para o relógio de pulso que apertava forte seu braço e viu que 12 minutos lhe restavam. Levantou o dedo para o primeiro motorista de ônibus que o enxergou na parada escondida pela árvore frondosa. Ao pôr a mão no bolso para pegar os centavos da passagem, os dedos se afundam em areia. Assustado ele fecha a mão e traz para perto de si. Uma areia cinza e brilhante escorria por todo seu corpo. Os bolsos repletos do pó o deixavam pesado, ainda mais aquele pequeno bolso que ficava em seu peito suado. Sem poder pagar ele desce e segue a pé, lentamente com um peso enorme e estranho. Estava gordo e cansado. Quando chega ao escritório Tadeu se despe e nu prossegue o dia. Foi difícil enfrentar todos aqueles papéis sem escudo algum, um colete à prova de balas que fosse. Mas o ponteiro conseguiu chegar até as dezessete horas, apesar da lentidão do dia.
Chegou a casa e viu o tapete da sala virar montanha. Toda uma tonelada do mesmo pó cinza se acumulava embaixo daquele veludo de marfim. Um brilho carregado que doía os olhos. O susto foi enorme, mas a diferença era que o cansaço não tinha fim. Dormiu trôpego em um sofá inclinado, com os pés no chão e a cabeça nos mais altos céus.
Acorda com um telefone que parecia gritar em seu ouvido como um machado. Era uma voz que conversava e nas entrelinhas queria um amparo. Tadeu depressa pôs uma roupa e saiu de casa na certeza de encontrar a voz em alguma casa ou qualquer esquina. Parou na banca de revistas e comprou uma carteira de cigarros vazios. Ao invés de nicotina, calafrio. Reconheceu na voz de uma bela moça aquela que o chamava ao telefone. Suas mãos se encontraram e o levaram de volta para casa. Chegando eles sentam no sofá já cinza e ele lembra que se esqueceu do fogo. Com o punho cerrado os dedos dela desabrocham um pedaço vermelho. Isqueiro. Ele pega devagar e fixa seu olhar. Ela o fita, seus olhos se abraçam e ele sente um conforto apesar de sentado no canto mais desagradável de todos. Havia poeira por todos os lados, que pouca gente via. Seu dedo desliza e a faísca nasce apesar da lentidão. Tic-tac. O cigarro acende? Explosão. A poeira virou pólvora, a sujeira solidão.
Tudo se perdeu. Foi-se acumulando, passando e ele sempre esquecendo na gaveta sua atenção. Estava lá agora estraçalhada, aos pedaços, como as outras coisas, mas que podiam ser recuperadas com muito trabalho. O estopim estava em suas mãos e toda bomba-relógio ao seu redor. Algumas vozes o alertaram, até mesmo a sua própria. Mas aquele olhar ao seu lado, intacto e doce, lhe dizia sem palavras, que estava lá sempre, não importava o que acontecesse. Bastava que ele não o implodisse. Mesmo sem nada continuaria ao seu lado direito. As contra-atitudes dependiam de suas ações. Ele conseguia perceber em uma gota que se formava, um amor inteiro que não acabava. Abraçaram-se longamente e perceberam que o tempo era curto pra refazer tudo aquilo antes de qualquer chuva, mas não existia relógio que pudesse contar o arrepio na espinha e o orvalho em canto de olho que sentiam juntos. E era nesse tempo que caminhariam. Eternas aquelas mãos, que mesmo diferentes, nasceram para abrigar-se uma na outra. E mesmo com toda aquela poeira ele sentia que sua palma podia ser estendida àquela voz doce que lhe acariciava todos os dias. Ele iria se levantar, reconstruir, correr, correr, correr, sem desistir. Afinal de contas, já havia ganhado o maior troféu de todos. Restava agora mostrar que merecia.
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