sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Vitória invisível

O time estava completo e pronto, a torcida lotava o estádio. Os jogos anteriores, as jogadas bonitas e os dribles de beleza, enchiam cada vez mais o peito de cada um e tecia sorrisos de orgulho naquela multidão. Um por um dos jogadores tinha sua história e importância no decorrer de todo o campeonato, poderíamos citar com honra as qualidades e a raça de cada um, mesmo sabendo que de vez em quando não jogariam nada bem. A confiança neles conquistada se grudaria como o suor ao redor de todo o corpo no fim da partida, especialmente na blusa que parecia colada ao peito. Inseparável.

Naquele dia, no entanto, o jogo distante teve um primeiro tempo de sensação estranha. Algo os dizia que nos outros 45 minutos algo daria errado. Sem ninguém desistir, nem sequer os mais pessimistas, até o sopro final daquele apito doloroso. Cortante aos ouvidos e inundador dos olhos.

E o segundo tempo começa. O time joga bem, os jogadores se jogam em cada bola, com prazer, sem medo. O campo estava especialmente bonito naquele dia, dribles gloriosos, toques e lançamentos de vibração com punho cerrado e arrepio esperando gol. As bolas beijam a trave, tocam de leve as pontas das luvas do goleiro adversário. Como dois amantes distantes a bola e a rede se queriam abraçar, necessitavam um ao outro para o gozo, gol. Um espelho, no entanto, parecia se erguer debaixo daquele pequeno retângulo, que atravessado poderia gerar um grito contido no peito da multidão. Euforia contida com camisa de força.

O tempo passou, o fim do jogo se aproximava. Os jogadores suados não paravam de correr, mas pareciam não acreditar. Depois dos quarenta e cinco minutos, o que restava a todos era rezar, aquelas mãos com terço enrolado como um pequeno menino ao lençol nos dias mais frios. Suor frio.

Nos acréscimos a bola explode no travessão e as mãos escondem os rostos incrédulos. Um contra-ataque se inicia. O time adversário corre, mas todos tem a segurança de que não poderiam ser afetados pelos outros. A bola pára nos pés do nosso zagueiro. Ele tropeça nas próprias pernas fortes e aos poucos vê a linha do nosso gol ser atravessada de forma lenta e dolorosa. Todos os olhos se fecham e o silêncio vigora com a escuridão. Orvalho silencioso da multidão.

Sopro de fim de jogo. Ninguém menciona um palavra, críticas não tem lugar nesse momento, apenas um olhar de decepção sem razão. Uma sensação de não poder xingar ninguém, pois a culpa não tem dono, nem terá. Comentários, críticas ou gritos deixam de existir por um momento. Nos deixem em silêncio por instantes, pois ele é necessário junto àquele olhar fixo para poder deglutir esse último pedaço que corta a garganta. Braços sobre o pára-peito, estendidos sem força. A camisa ao chão.

O campeonato não acabou e apesar de tudo podemos ainda ser campeões. Aquele dia, porém, fica marcado como dor no peito que vira sinal. Mas os sinais do corpo podem ser vistos como estrelas, que são iguais para mim como estas bonitas que tu vês daí.
A lua parece ter explodido e fragmenta-se em pequenas estrelas que polvilham a noite dura. Tum-tum. Tum. O coração ainda bate desritmado, mas com passos de bailarina.
Um a um os jogadores estendem as mãos para levantar o companheiro sentado ao chão com cabeça baixa.

- Vamos, eles ainda estão todos torcendo em silêncio. Olha ao redor. Ninguém foi embora do estádio. Todos vão ficar aqui até o próximo jogo começar.

domingo, 25 de outubro de 2009

Latência


Eu não parei de escrever. Sinto que seria uma espécie de morte. Estive apenas vivendo meio invisível. Percebi que isto aqui é essencial pra mim e por isso, partilho um pedaço de um diário de viagem. Qualquer balbucio ou espasmo que lhes façam crer que ainda estou aqui, latente. Imagem fotográfica de um filme não revelado.


19.08.09 - Sol Maior

As mochilas estavam repletas de roupas e o corpo de ansiedades. Uma viagem sem muitos preparativos: comprara uma passagem até a metade do caminho e o resto descobriria na estrada. Sobe para o ônibus com um amigo pronto para todas as loucuras que o mundo poderia lhe reservar e mais as que ele criava. No caminho, uma manhã calma de quarta, abre Perto do Coração Selvagem de Clarice, que sempre deixa seu olhar sobre as coisas mais sensíveis. Quando lê um parágrafo que seja dela, já fecha o livro e contempla tudo de uma forma diferente, mais intensa e minuciosa. Pássaros negros surgiam pela janela, mãos abertas de aconchego e até mar em meio à paisagem do sertão.

Pois bem, quatro horas se passaram entre palavras, cochilos e música, onde nos pequenos fones Diana cantava em voz aguda aos seus ouvidos "Tudo que eu tenho meu bem é você/ sem teu carinho eu não sei viver/ volte logo meu amor", nessa sensível regravação do clássico “Everything I Own” do Bread. Fazia-o lembrar de Hermila na janela do ônibus olhando para João que a seguia na moto, do lado de fora, mas dentro de seu coração, no meio daquele sertão que se coloriu nas mãos de Karim, no Céu de Suely.

Na chegada o sol estourava as visões ao redor e fazia escorrer suor nas costas cheias de bolsas enormes, que carregavam em plena BR. As costas doíam e os dedos começaram a ser estendidos na esperança de uma carona, nem que fosse pra algum lugar onde a sombra os esperasse soprando. Resolveram seguir ao centro da cidade e o sol juntamente com as bolsas transformavam metros em quilômetros. Apesar disso, seguiram. À procura de um almoço mais barato, tempos depois acharam uma pequena casa com duas mesas postas do lado de fora. Uma senhora os explica que o prato feito custava seis reais, mas que depois de ver a tristeza e suor em seus rostos, transformam-se em fechados cinco reais. Sentaram e respiraram. A comida não era das melhores, mas a fome intuitivamente tratou de limpar o prato rapidamente.

Entre ligações conseguiram contatar uma conhecida da cidade, que os convidou para uma visita. A casa era muito longe, no entanto, e acabaram por voltar à estrada para seguir adiante, rumo ao destino final. Pararam em um restaurante na beira da rodovia e o sol pediu uma cerveja. Cada gole parecia água gelada jogada sobre brasas queimando. O Celular toca. Era a garota da cidade, dizendo que estava vindo ao encontro deles. Deixando um rastro longo de poeira, encosta ao lado do restaurante um moto-táxi. Ela chega e os convence a andar até sua casa, prometendo um banho, cama e água gelada. Foi o suficiente para pedirem a conta.

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O resto sobrevive apenas na memória, minha e de todos que atravessaram esse caminho.
Acho que o momento de terminar já se passou. Mas algo fica: Uma viagem nos recria e refaz.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Saudade de você


Ai que saudade de meu amigo.
Ele aparecia de vez em quando, sorrateiro.
Às vezes pela madrugada.
Falava manso e eu escutava.
Gritava alto sem precisar falar.
Aparecia como um presente
enquando eu sonhava.

Sentado no sofá
eu o esperava com as mãos suadas.
ânsia no peito, vista cansada.
às vezes chegava com poesia no bolso
pintura no rosto
e eu adorava quando aportava
com sangue no olho.

Mas de repente ele tomou raiva de mim
assim como um jogador
que pendura a chuteira
pressentindo o fim.

Me abandonou,
de um dia pro outro
Sem avisar ou acenar.
fugiu sem deixar bilhete
carta ou testamento
Apenas um lenço manchado
de amargura do olhar.

(...)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Anjo imanente


Papel retorcido como ferro
Em fogo que arde
concreto esfaçelado,
Palavras que queimam
Como gelo em pele seca

Escrevo no compasso dela,
Aquela outra mão que me inspira
Respira, respira.
Alado que seja ou com asas desenhadas
Seja noite, calor ou madrugada.

Não há mais mãos em vidros
Fugiram os olhos repentinos
Mas o caminhão de alma-cimento
Descarregou-se em meu peito e costas.

Sensação de afogamento súbito
Falta ar, falta vento no mar.
Socorro tem alguém aí?
Estou morrendo de desejo
De sede no mar salgado

Mas aquela inspiração profunda
Que repõe aos poros todo o ar
Sensação de ressuscitar,
Faz-se presente com braços salva-vidas
Dedos suicidas.

Como flor-espinho que fere forte
Mas que o vermelho das pétalas
deixa nódoas infinitamente mais doces
Mais fundas, a tudo inunda.
E sem perceber ao dobrar a rua,
Sem olhar para um lado e para o outro,
Cura.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Vai e vem


"O primeiro amor passou / O segundo amor passou / O terceiro amor passou / Mas o coração continua".

Carlos Drummond de Andrade.

domingo, 26 de abril de 2009

Céu imenso


Os olhos marejados e a vista trepidante de um fim de noite anestésico.
Após longas e fartas risadas com pessoas inestimáveis, a busca por algo que faça sua alma rir no compasso do corpo. Embriaguez fortuita que o faz pensar no que a vida o tirou e por sorte trará novo caminho.
Mãos com punhos cerrados ressetados para cima, alvo de céu imenso. Olhos apertados entre abraços que podem agora ser recebidos até o último gole, gota intensa.
E no caminho de pedras disformes, marca-se o caminho indolor, mas incômodo, das paixões não correspondidas, do amor que circula manso ao redor das áureas de fumaça, presente em cada abertura de braços ou mãos estendidas.
Paixões que respondemos com cartas a nós mesmos, para apagar vazios, esfumaçar buracos que porventura ficaram nos quarteirões vermelhos.
Imagens de momentos intensos sobrevoam a cabeça, como urubus – aqui ressignificados - com sede de reviver instantes marcados, comer cada pedaço daquilo que trás arrepios, calor debaixo de chuva forte e acolhedora.
E tudo segue diferente, mas forte como sempre há se ser.

Suspiros semânticos


Subo em uma moto carregando aquele velho jarro de flores tortas e bonitas, perseguindo o fim daquela estrada curvilínea.
Horizonte bem longe,
desejo irreparável.
Procuro sem alcançar,
me realizo em procurar.

Passando por sertões e desertos com céus acrílicos azul piscina, olho pra janela do ônibus ao lado e vejo um semblante que me acolhe e um sorriso que me faz mais veloz que os 100 km/h que a moto me trás.
No compasso destemido,
Um suspiro maior que a estrada a percorrer;
De alívio,
Doce.
De Encantamento,
Limão.
Mudança para revitalizar.
Combustível no ar,
Do vazio à Vazão.

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Nas palavras deixo às claras meu encantamento por Abbas Kiarostami e Karim Ainouz.
Dois autores essenciais, que sempre re-visito, sendo que o último abracei quando esteve em nossa terra, antes também dele.

Do gosto de Cereja e Close-up ao Céu de Suely e Sertão Acrílico Azul Piscina.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Rua das flores


Por maior que fosse o quarteirão eu sempre conseguia avistar o fim. O caminhar naquela rua poderia durar meses ou anos, dias ou décadas. Mas o tempo daquele bloco era incontável quando conversávamos sorridentes, nos olhávamos ansiosos.
As casas e prédios demarcavam fases e tornavam-se símbolos das sensações. O velho cinema virou aconchego, o parque de diversões satisfação e o café da esquina agora era saudade.
Por mais imperceptível que fosse, coincidentemente sempre observávamos as mesmas formigas ao chão, carregando folhas do dobro de seus tamanhos. Indícios dos detalhes que marcariam aquele quarteirão inteiro. Por menores que fossem, eram as coisas mais fortes.
Ouvia canto de pássaros que sobrevoavam nossas mãos, sem, no entanto vê-los, de tão vasto era o céu naquele tempo. Sabíamos exatamente o que nos cantavam aos ouvidos.
Chegava a hora de atravessar a rua e alcançar um outro quarteirão. Sabíamos que havia um fim, mas de vez em quando no caminho meus cabelos esvoaçavam, teus sorrisos pousavam, nossos olhos viajavam e de repente a gente esquecia que a calçada acabava. Amnésias incomensuráveis.
Reconfortante era saber que nossas memórias eram rua sem fim. Fechando os olhos sempre voltávamos àquela casa amarela de número um.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Zero


Urubu come Carniça.
E Voa.

Miró.
Poeta Pernambucano.


P.S.:
Nem todo zero é vazio.
(...)
Ainda tem alguém aí?

Já te comi



Pára. Peito.
De repente abre os olhos aturdidos na varanda, depois de um sonho acordado sem receio. Ficou sem ar. O peito parado, no aguardo. E a realidade lhe cutuca com maldade a ferida de carne. Caminha até o quarto e se pinta, na frente do espelho que lhe diz quem é, mas não reflete o que pode ser. O que é debaixo da pintura grossa. Maravilhosa.
Rímel aos montes, pra deixar os olhos brigitte-bardot. Pós pra deixar o pó. Sexo escondido como nó. Agora sim, linda e maravilhosa, transformada em não-tem-quem-possa. Deslumbrante, deixa cair brilho. Pousa na flor. A janela aberta, as cortinas voando soltas com a força do vento. Prenunciando o momento. Deixando aberto o prenúncio de um horizonte. Uma linha que quando chega, trás novo caminho. Céu a ser voado.
O carro pára e ela se escora, sempre na janela. Presságio. Braço. Olho. Olho.
É grande o cacete? Do tamanho da tua sede.
Entra pra gente levar vento na cara. Fugir de qualquer canto. Onde não tem esquina. Onde flameja tua sina.
Travesti macumbeiro. Preconceito pro ano inteiro. Vamos dançar, ao som daqueles tambores férteis. A cada batida com mão aberta, forte. Liberta. Espermas explodem no ar, dançam em qualquer lugar. Todo lugar. Fecundam os ouvidos. Olhos entregues com cabeças prenhes. Corpos emprestados para bom uso. Cerveja e vinho. Carinho. Nada cognitivo. Suor. Suor. O quê? Calor. Muito calor. E dentro um vento de carro a 100 por hora. Demora. Demora.
Vamos? Pra quê? Pra comer. Já estou satisfeito. Refeito. Quero te mostrar a linha do fim da vista. Qual? Aquela ali ó. Deste tamanho? É. Bora.
Eu sei, tu quer me comer. Eu já te comi. Quando que eu não vi? Desde a hora que tu entrou no carro e eu sorri. Filho da mãe. Bota a cabeça pra fora e deixa teus cabelos louros e escrotos voarem, que eu quero ver. Acende o cigarro e deixa queimar. Todo a fumaça que ta aí dentro e não te deixaram soltar. Onde há fogo há fumaça. Uma desgraça. Uma ameaça. Com graça. Tudo em mim parece asa.
Chegamos, mas não pára o carro. Acelera. Mais a linha ainda está lá. Porra. Presa junto ao sol. Eu sei. Mas não tem como escapar. Em todo canto tem muro. Com pega-ladrão e tudo. Você tem que fechar. Teus olhos e mais o punho. Olhar pros lados e não ligar. Deixa o telefone tocar. Tocar. Tocar.
Mas travesti não é pra ninguém amar. Meu pai que disse quando botei vestido. Ele cuspiu no chão e me rasgou o intestino. Mas hoje eu tô aqui, perto do céu. Com água na boca, fogo no corpo e desejo no copo. Divino.
Eu não te disse que foste tu quem costurou esse sorriso aqui na minha cara? Que nem bordado de senhora ao nascer da madrugada. E o cuspe secou. Evaporou. Agora solta essa fumaça esparsa. Que o que te Mata não é o cigarro, é isso preso no teu seio farto. O cu é seu, faz o que quiser. Mas eu quero você toda. E essa agora? Vai bem me pedir em casamento. Pff. Não. Eu quero é lua-de-mel. Com todo direito a escarcéu. Orgia em mar revolto, que arrebenta. E salpica na cara escura de todo mundo que quer nos cortar. Conservar.
Contigo eu já casei, quando apertei tua mão e aqui cheguei.
Filho-da-puta.
Eu disse sim e nem conta me dei.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Palavras e música além-mar


Procurando fotos, achei palavras. Me tocaram. E apesar de quem as escrevia ter parado desde 2004, deixou um longo acervo para deslumbramento. Aqui vos apresento:

http://music-is-math.blogspot.com

Eis aqui algumas:

Um Amigo


Há uma casa no olhar
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.

Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,

onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.

Eduardo Bettencourt Pinto
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Se houvesse degraus na terra...

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Desata o nó do sorriso, só isso.

Esse era o momento da noite no qual nos despedíamos sem querer. e assim que dizíamos aquele último tchau murmurado, que na verdade era um não querer deixar aqueles braços, corríamos para uma comunicação de palavras, que abrandavam aqueles desejos incontidos com suaves frases que escorriam vontade de nunca mais largar aquela cabeça pesada, naquele ombro extremamente macio, o seu lugar.

Mas hoje o receio tomou lugar na poltrona do silêncio.

Aquele nome escrito em qualquer lugar me sussurrava não.
Aqueles olhos mel-escuro antes ávidos de carícias, agora me apontavam placas de proibido.
Mas não era um proibido que nos chamava a romper limites. Era algo estarrecedor, como "rua sem saída". Um muro.

O mais escroto de tudo é perceber que eu mesmo ergui esse muro, tijolo por tijolo, numa construção inadequada em meio a uma rodovia absurdamente movimentada. Tudo parou neste instante. Aquela parede de blocos fartos já estava lá há algum tempo. Estava velha e rachada, com buracos abertos. E eu não tive a coragem de estraçalhar com a velocidade que vinha. Teria explodido e tudo ido aos ares, inclusive eu.
Mas hoje a rodovia pára e eu fico no meio do caos, com buzinas estridentes por todos os lados. Todos gritam meu nome com raiva e escárnio. Aperto os ouvidos com toda força na tentativa de fugir daquelas vozes que me sangravam, e não consegui. Caído ao chão tudo silencia e ninguém vem ao meu socorro. Afastam-se, uns com olhar de recriminação e desgosto, e vão embora. Ainda deitado percebi que era eu culpado - se é que existe um corpo sem mancha - e o sangue descendo pelo corpo, necessário. Mas em nenhum momento me arrependi de causar todo aquele furacão, redemoinho de desejos irrefreáveis. Estava escrito naquelas palavras gigantes, desde o início.

Olho para cima e vejo junto ao sol forte, braços estendidos. Me levantam e me apertam. Um número considerável até. E entre eles, vejo escondido em meio à pequena multidão, aqueles mesmos braços que se cruzavam quando eu passava. Eles me receberam sem nódulos. O coração estava ao lado, jogado no asfalto quente e seco. Andei e delicadamente o guardei no bolso direito da camisa, bem ao lado do meu, que de tanto bater, parou. Nesse momento continuei caminhando só pelo resto da estrada e pude sentir na boca um gosto de cereja.