Ele escrevera num papel de anotações de telefone:
"Tenho sessenta anos, no entanto me sinto como três rapazes de vinte. E juntos não me deixam parar. Nem de madrugada. Aliás, a madrugada é a preferida por todos. Só que um teima em querer escrever durante horas a fio em minha cabeça. E ele aparece apenas em temporadas, em tempestades, algumas semanas e pronto. Parece zarpar em algum cruzeiro rumo à África e só volta quando sinto vontade de vomitar. Com ele eu vomito tudo. Eu todo."
Engraçado, ele nunca tinha escrito nada. E de repente soltou isso. Talvez escrevesse com o corpo vagando por aí ou escrevia com a boca, sussurrando em ouvidos impressionáveis. O que se sabe é que nesse dia escrevera a punho mesmo, rapidamente – como se tivera incorporado – e pronto. Só isso. Saiu pela porta, atrás de seu emprego-de-fim-de-ano. Já que não tinha possibilidades de hora-extra ou regalias de décimo-terceiro.
Passou em frente a um shopping e uma pequena placa enferrujada no canto de uma loja dizia: “Precisamos de papai Noel. Tratar aqui mesmo”. Rápido e inconscientemente irônico. Pensando em entrar, ele se olhou num espelho que nunca falta em shopping: Magro, desbarbado. apenas sua barriga de cerveja e sua velhice serviriam ao Papai Noel modelo. Mas ele entrou. Ia entrar de qualquer jeito. Quem sabe as tendências de papais-noéis tenham mudado. Ele sabia que não, mas adorava acreditar que sim. Ouriçava-se com essas subversões imaginárias recorrentes.
“Bom dia. Vocês ainda estão precisando de Papai Noel?”.
“Sim, sim. E com urgência. Você estaria interessado?” Falou uma atendente com olhar surpreso de quem não recebera ninguém interessado. Ele Pensou logo que eles deveriam pagar muito mal. Muito mesmo. Mas respondeu que estava interessado. Ele estava desesperado, tinha que admitir (pelo menos para si mesmo).
Uma longa conversa aconteceu com a gerente da loja de brinquedos e de repente ele sai carregando uma enorme roupa vermelha no braço direito, cobrindo metade de seu corpo. Com aquele velho sorriso, ao mesmo tempo de deboche e satisfação. Sim, pois esses dois sentimentos se confundiam.
Chegou em casa e jogou aquela imensidão de veludo vermelho em cima do sofá, ficando apenas com uma peça na mão: a barba. Aquela barba grande, branca e macia. Seus dedos entravam naquele emaranhado alvo como garotos pulando em piscinas enormes e azuis. Nunca tinha tido barba. Nunca o deixaram ter. Primeiro os pais, por quererem ver sempre o filho com cara limpa, esbanjando sucesso. Depois a mulher, buscando sempre aspecto de limpeza. E por fim o chefe, impondo uma falsa dignidade estampada na cara, que por dentro ele próprio não possuía.
Mas naquele dia ele teria barba. E não precisaria deixar crescer. Esperar duas semanas ou três meses? Não. Era só puxar o elástico até a nuca e regozijar-se. Custaram, mas vieram. Antes brancas do que nunca. Sentou-se no sofá e com a cabeça deitada para trás acariciava aquela barba só dele. Ali, naquele momento, aquela era a mais verdadeira barba que qualquer aspirante a papai Noel pudesse sonhar em ter.
Nasce o sol e os pássaros cantam perto da janela da sala, onde havia dormido jogado ao sofá. Eram seis horas e já tomava banho para vestir sua grande roupa veludo-vermelha. Colocou-a dentro de uma grande sacola e levou para vestir-se no shopping, já que não pretendia andar de velho Noel pela rua. O deboche se sobressairia. Quando saiu, no entanto, pensou na possibilidade de estar a rigor natalino e ser indagado por qualquer criança-não-frequentadora-de-shoppings, que provavelmente faria um pequeno pedido e ao menor gesto de atenção, sentiria-se satisfeita. Voltou e vestiu-se em casa. Foi bom demais o caminho. Recebeu tapas nas costa na parada de ônibus, não pagou passagem, recebeu dezenas de bom dias e vários abraços infantis. Sem contar no abraço de uma sorridente senhora.
Mas a hora do trabalho havia chegado. Sentou-se em uma cadeira que se pretendia de papai Noel, mas na verdade parecia da sala de janta da gerente. Não deu importância. Começou a receber as crianças no colo, uma a uma, pequenas e tranqüilas. Só um pequeno buliçoso tentara infernizar-lhe a vida puxando seu bem maior: a barba. Tentou, tentou, até que o conseguiu tirar do sério. Tocara em seu ponto fraco: “Se puxar de novo menino, vou comer teu cú”. Soltou ele quase que sem querer – quase – porque foi querendo. Que papai Noel filho da puta eu sou, pensou ele enquanto ria por dentro e esperava atônito a reação do menino ou dos pais. O garoto saiu correndo meio assustado. E o Papai Noel ria-se com um autêntico “rourourou” irônico.
Já no fim da tarde, depois de mais habituais pedidos de crianças e simpatias do bom velho, sentado em sua cadeira ele ouve de uma discussão. Era a gerente da loja impedindo que uma criança fosse pra fila do papai Noel, pois os pais não tinham comprado presentes na loja. Ele levanta-se rápido e ansioso da cadeira e vai ao encontro da confusão. Tenta convencer a gerente a deixar a pequena menina entrar, encarnando o espírito e dizendo que ela não teria o direito de impedir a garota de falar com ele, Papai Noel. Ela, rude, não aceitava qualquer acordo fora das regras mercantis e o bom velhinho se emputece. Difama a loja e de forma corajosa insulta fortemente a intransigente gerente – puta, safada e hipócrita estavam entre os adjetivos -. Antes disso, lógico, ouvira o sussuro de desejo da pequena garotinha e se prontificara a presenteá-la. Com certeza aquela menina ficara orgulhosa com o enfrentamento fiel de seu papai Noel.
Ao fim de tudo ele rasga a roupa em meio ao shopping já aturdido e tira todos os adereços do corpo. Estranhamente não consegue arrancar a barba. Puxa, tenta, arranha e ela não sai. Depois daqueles momentos e dificuldades que enfrentara por todo o dia, ela havia fincado território em seu rosto suado e brando. Havia Crescido. A barba e ele.
7 comentários:
ó
são exatamente sete e vinte e cinco e eu já tô atrasada.tenho que sair agora, porque o engarrafamento a esta hora ali por aquelas bandas da aguanambi é insuportável.
preciso correr e acelerar.
mas não pude deixar de dar uma passadinha aqui de bom dia (os passarinhos estão cantando bem aqui).
não li seu conto todo, confesso. por causa do tempo.
mais tarde, o trabalçho me dando uma trégua, vou ler demoradamentee,assim, comentar sobre o que achei dele.
e tal e coisa
e coisa e tal
etc e tal
bom dia, beiber,
bom dia...
pois,
o trabalho não me deu trégua, conforme eu já previa. muitas coisas a resolver.
hoje à tarde estarei dando uma oficina em uma escola. Poranto, só poderei ler tua história logo mais à tardinha,quando eu chegar em casa.
ah..cheguei atrasada no trabalho. fui "quase" assaltada ! :( me levaram ricos dois reais...hihihihi
beijos de meio-dia,anônimo.
Joice
(nao tava conseguindo mandar comment com minha identidade do blogspot.)
;)
já tava dando saudade [...]
mas voltei :)
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