Da varanda, sonhei que era criança. E sorria na
praia sem os pequenos dentes da frente, despreocupado com outros olhos. O
que me dava medo eram aquelas ondas que arrebentavam pertinho da areia e
dos pés. Eu corria em zigue-zague tentando salvar das espumas o pequeno
corpo seco. Mas sempre num certo momento jogava tudo que segurava em
minhas mãos, fossem búzios, conchas ou plásticos, e adentrava de olhos
fechados aquele caminho molhado. As mãos e o peito aberto para o
salpicar daquela vontade. Apenas enganava o mar antes de abraçá-lo com
gosto de entrega.
Bem longe daquele lugar uma pequena menina
também se aventurava naquele grande pedaço azul. Morando à beira da
praia, parecia que todos os dias ao dormir ela pegava ventos delicados
de desejo. Eram aqueles mais azuis e fortes, que causavam calafrios.
Aquilo tudo foi juntando-se nela como uma maresia ao corpo. Mas esta
maresia que ela recebia pousava na pele e parecia emitir ressonâncias
irreparáveis do lado de dentro. Ao mesmo tempo que ferrugem, seu peito
pegou delicadeza. Acometeu-se de sensibilidade. Um toque no ombro era
cuidado, qualquer mão nos cabelos era bem querer e todo abraço era
entrega. Seus olhos pareciam abastecidos de todo aquele sal.
Sem saber que no mesmo atlântico lavavam seus rostos e mergulhavam seus
sorrisos, em praias diferentes eles pegavam exatamente as mesmas ondas. E
se abasteciam ao mesmo tempo em que deixavam a pele cada vez mais
intensa e frágil para enfrentar o mundo.
Cresceram e mesmo
vestidos nunca deixavam totalmente encobertas as marcas daquela pele
frágil, sensibilidade latente. Então numa certa tarde, cruzaram
corredores opostos. Ela com uma mochila pesada que nunca comportava
todas as suas vontades e ele com os cabelos sempre assanhados, pois
nunca fechava as janelas. Na noite seguinte, faziam parte da mesma
multidão. Deslocavam-se e não se encontravam, apesar de atravessar os
mesmos lugares e pararem para conversar e sorrir com as mesmas pessoas.
Mas num breve momento, daqueles como suspiros, suas mãos deixaram-se
tocar em meio a todas aquelas pessoas e ele inconscientemente levantou o
dedo indicador, acariciando as costas das mãos daquela menina.
Aquele gesto bastou para perceberem a mesma maresia. Podiam remar em
direções opostas, nadar contra a maré ou deixar-se levar por correntezas
diferentes, mas essa maresia que carregavam no peito era a mesma e isso
nunca mais iria separá-los, quaisquer que fossem os caminhos a seguir
ou país em que escolhessem morar. Independente de território ou momentos
iguais se encontrariam para sempre por ressonância, em acordes
musicais. O lugar seria a pele e o tempo do peito reinaria. Forte feito
maresia.